terça-feira, 11 de novembro de 2008

A psicóloga roubada.

Eu não sei como nos descobriram, mas ficamos conhecidos depois da publicação do livro A Criança Roubada, de Keith Donahue. Desde então, precisamos ser mais cuidadosos ao roubar almas. Vivo de floresta em floresta há pouco mais de um século e já estou farta disso. Mesmo tendo a sorte de morar em um país tropical, com florestas quentes e diversificadas. Cansei tanto, que resolvi ficar um tempo na cidade. Escolhi São Paulo e me abriguei no Parque da Água Branca.

Achei a cidade muito louca e percebi que tinha de fazer terapia para enfrentar, depois de tanto tempo, um mundo tão estressante. Precisava roubar uma alma para renascer e resolvi seduzir uma psicóloga. Encontrei uma com consultório na Vila Madalena, um pouco distante de minha então recente moradia. Comecei a estudá-la para poder entrar em ação. Um dia, enquanto eu a observava mais uma vez, foi brutalmente assassinada. Fiquei sem fôlego, tremendo, mas eu não podia mais me desviar de meu objetivo.

Quase desisti, pois percebi que ser psicólogo pode ser perigoso. Crimes, loucuras, delírios. Desabafos e reflexões no divã... não sei se eu agüentaria isso. Mas, como conhecia mais ou menos a rotina de um psicólogo, achei por bem continuar nesta jornada. Como só posso sair à noite, porque minha aparência assustaria qualquer ser humano, fui dar um rolê no centro da cidade.

Certa noite, em plena Gabriel dos Santos, vejo um grupo de pessoas em frente a uma casinha amarela. Aproximei-me sorrateiramente para sacar qual era a desse grupo. Para a minha surpresa, deparei-me com o grande portal. Tinha de atravessá-lo. A minha vítima estava lá dentro. Uma psicóloga dando sopa! Descobri que era uma escola e, aquelas pessoas, alunas de um curso de formação de escritores. Que bom que alguma coisa ainda é como antigamente, pessoas querendo escrever. A chance era única!

Eu tinha de pegar a psicóloga sozinha. Apenas assim conseguiria roubar sua alma sem que se percebesse. Segui-a por muitos dias. Ela era cuidadosa, mas nem tanto. Às vezes ela ficava sonhando com seus enormes olhos abertos. Seria aí que eu roubaria sua alma. Num sonho. Precisando escrever, ela se entregou aos devaneios. Foi aí que entrei em ação. Quando apareço em sonhos, posso assumir qualquer forma. Tornei-me um anão e, para minha surpresa, ela também estava roubando uma alma através da voz de alguém. Mas fui mais rápida. Tornei-me ela antes que ela se tornasse aquela voz.

domingo, 9 de novembro de 2008

Fita verde no cabelo

Depois do enterro da vovozinha, Fita Verde, recuperando sua fita verde, foi dar uma volta no bosque. Eis que, sub-repticiamente, entre avelãs e princesinhas, vê um lindo corcel negro. Aproximando-se, o tal corcel era tão maravilhoso que Fita Verde jurava que fosse alado.

Querendo se aproximar dele de qualquer maneira, pois estava enfeitiçada por sua beleza, gaguejando, perguntou ao lindo cavalo a primeira bobagem que passou por sua cabeça: se ele havia conhecido sua amada vovozinha. Ele, com uma voz grave e suave, respondeu que a vovozinha não, mas que conhecera o lobo bem antes da chegada dos lenhadores, mas esta era uma história do passado.

Fita Verde, surpresa, quis saber a idade deste animal tão glorioso. Ah! vivo há quase trezentos anos! Fita Verde olhou o enorme corcel negro e, julgando-o árabe, imaginou que ele ficaria lindo ornado com os mais belos paramentos. Só que a única coisa que ela tinha nas mãos era a fita verde.

Receosa de que o corcel negro se afastasse, tratou de mostrar logo a fita verde que havia em suas mãos. Rápida no raciocínio, disse que ele ficaria maravilhoso com aquela fita em sua crina. O corcel negro olhou para ela com uma mistura de espanto e curiosidade e permitiu que Fita Verde trançasse sua crina com aquela fita.

Como sua crina era longa e espessa, Fita Verde demorou um pouco para trançá-la. À medida que ela ia trançando, a fita ia aumentando, dando a impressão de mágica. Assim que Fita Verde chegou ao final da trança, a fita verde parou de crescer. Foi um encantamento. Fita Verde acabara de formar um elo indestrutível com o maravilhoso corcel negro.

Fita Verde e Corcel Negro tornaram-se aliados. Fita Verde montou Corcel Negro e tornaram-se um só. Corcel Negro abriu suas asas e, num galope macio e cadenciado, deixou o chão, pondo-se a voar. Desde este dia, toda vez que alguém olhar para o céu e ver uma estrela cadente verde, é Fita Verde e Corcel Negro bailando na imensidão da liberdade.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Saudades

Eram casados há um bom tempo. Faziam tudo juntos. Viajavam, trabalhavam, passeavam, pegavam carona um com o outro. Aproveitavam ao máximo as chances que tinham para se ver. Quando cada um fazia suas coisas separadamente, davam um jeito de voltarem mais cedo para casa e ficarem juntos.

Eles se amavam. Um dia, houve uma oportunidade de viajarem separados. Não era a primeira vez que isso acontecia, mas fazia muito tempo que não tinham um momento como este. No começo ela ficou um pouco insegura, não achando muita graça na idéia. Depois, foi se acostumando com o assunto e passou a gostar da situação.

Daí para criar ansiedade foi um pulinho: Vou passar a tarde no shopping sem dar satisfações. Vou passar na casa da Rô. A Ro era uma amiga de escola, que havia se separado e não se casou novamente. As duas sempre se identificaram. Podiam ficar anos sem se ver ou se falar, que, quando se reencontravam, era como se nunca tivesse tido uma pausa na convivência entre as elas.

Ir ao cinema sozinha também era uma deliciosa aventura. Ou ficar na academia sem prestar atenção no relógio. Naqueles dias, o mundo era só dela. Começou a tarde no shopping, e, antes de almoçar no América, passou na livraria para comprar um livro. Quem sabe o livro novo do Fernando Pessoa. Como não havia chegado, comprou a contra-gosto Crepúsculo, da estreante Sthephenie Meyer.

Tudo parecia estar correndo perfeitamente bem. As horas foram passando e ela não se deu conta de que já era noite. O cinema ficou para outra hora, encontrar-se com a Rô deu preguiça, a academia estava vazia e chata. Depois de tantos planos, ela voltou para casa, apressadamente, na esperança de que o telefone tocasse e fosse ele, confessando, mais uma vez, sentir saudades.

domingo, 19 de outubro de 2008

A greve dos ovos

Em um sítio muito confortável, morava Xandoca, uma galinha incrível. Bonita, simpática e mãe dedicadíssima. Suas penas eram reluzentes. Seu corpo, bem gordo, uma qualidade e tanto para sua espécie. Ótima poedeira e chocadeira de primeira.

Não tinha nenhum defeito. Os galos eram doidos por ela. Era só jogar um charme e pronto. Todos ficavam muito apaixonados. Tinha também diversas amigas. Conversavam o dia inteiro. Era um falatório danado, que só cessava na hora de dormir.

De manhã, comia quirera, e, depois, ela e as amigas corriam até as cocheiras para aproveitar a ração dos cavalos derramada no chão durante o café-da-manhã. Não havia desperdícios. Ao longo do dia, além de fazerem caminhadas, comiam bichinhos, insetos minúsculos, minhocas, sementinhas e tudo que fosse apetitoso.

Dos galos amigos de Xandoca, Polenta era o preferido. Garboso, todo branco, porte atlético, altivo, de temperamento marcante. Defendia o galinheiro como nenhum outro. Ganhara esse nome por sorte. Ele foi presente, na véspera de Natal, e, como era muito bonito, não foi para a panela, fazer companhia às polentas.

Os anos foram-se passando e as galinhas multiplicando-se. Botavam ovos maravilhosos, grandes, gemas avermelhadas, sabor acentuado, diferente dos ovos das granjas. Mas, como tudo na vida tem começo, meio e fim, elas foram ficando velhas. Foram engordando demais, começaram a ter dificuldade de locomoção. Coisas que vêm com a idade.

Xandoca, que não era boba, percebeu logo o seu fim. Experiente na arte de influenciar as mais jovens, começou a fazer um movimento de greve. Incitou todas as galinhas, desde as mais novas às mais velhas, a não botarem mais ovos. Nem unzinho sequer. Com isso, prestariam atenção em outra coisa ao invés de fazer uma bela canja com ela.

No começo ninguém percebeu muito. Depois, quando quase não havia mais ovos para serem comidos, deu-se conta da situação. Resolveram, então, dar vitaminas para as galinhas, prenderam-nas no galinheiro para terem certeza de que estavam comendo ração. Mas já era tarde. Nenhuma galinha daquele sítio, do vizinho, da cidade, do estado, do país estava botando ovos!

Ficaram alarmados! Os ovos existentes ficaram caríssimos. As donas-de-casa, desesperadas. Era o fim dos bolos, das empanadas, dos bifes à milanesa, das gemadas e de tantas guloseimas. Os quindins tinham seus dias contados, as panquecas nunca mais seriam vistas nas mesas. E os petits gateau, sucesso dos restaurantes, que levam cinco gemas de ovos na receita!

Uns afirmavam que era a troca de penas. Outros que, quando o rabo do galo cai, as galinhas não botam ovos até que o rabo do galo cresça. Alguém foi correndo até o galinheiro ver se Polenta tinha rabo: foi um choque. Polenta estava sem rabo.

Foi um tal de fazer promessa, rezar, fazer simpatia, e nada. Não havia galo algum com rabo. No sítio, na vizinhança, na cidade, no estado, no país. Os maiorais em genética e em reprodução se reuniram para saber o que estava acontecendo e como solucionar o problema. Nunca ninguém havia se deparado com esta situação. Chegaram a pensar em transplante de célula tronco, mas iria demorar anos e era impossível ficar sem ovos durante esse tempo. Seria um problema na economia.

Xandoca, que não tinha pós-graduação, não era doutorada, era simplesmente uma galinha, se divertia e guardava um segredo com ela. Aquele que os homens jamais descobririam. Nem os mais estudados. E os dias foram-se passando e os homens se desesperando. Se demorasse mais, não haveria nem galinhas não só para as canjas, mas para as coxinhas, para os fricassés, para os estrogonofes, e para muitos outros pratos deliciosos.

Xandoca, apesar de não entender muito de laticínios, estava com a faca e o queijo nas mãos. Ela sabia de sua importância, mas queria que o mundo também soubesse. Só que com uma coisa ela não contava. Com crianças chorando. Isso foi de cortar o coração. Xandoca não agüentava ver nem pintinhos, nem meninos, nem meninas chorando. Ela tinha o coração mole.

Então, depois de muito rodopiar, resolveu tomar uma atitude. Reuniu todas as galinhas e disse: Meninas, não podemos mais fazer greve. As crianças estão chorando. A maioria não queria voltar a botar ovos. Afinal, todas elas teriam o mesmo fim e isso era injusto.

Depois de muito penar, Xandoca foi convencendo uma a uma a botar ovos, só que escondido. Não precisavam botar ovos para virarem omelete. Só para virarem pintinhos. Então, disfarçadamente, uma a uma ia para o mato botar ovos em um lugar bem protegido, e voltava como se não tivesse acontecido nada.

Até que as galinhas começaram a ficar chocas. Quando as galinhas ficam chocas, tornam-se muito bravas, só que desta vez elas não estavam. Pelo contrário, estavam de ótimo humor. Estranho. Havia uma coisa diferente no ar. Até que um dia as galinhas iam para o mato e voltavam com muitos pintinhos. Mas muitos mesmo.

Foi surpresa geral. Chamaram novamente os bambambãs e nada. Não conseguiram adivinhar o que havia acontecido. Só um deles percebeu: as galinhas estavam cantando. E cantavam bem, uma melodia maravilhosa, que ele nem os outros conheciam. Estava desvendado o grande segredo de Xandoca: as galinhas agora tinham mais uma qualidade, que aprenderam com os passarinhos: a de cantar e, conseqüentemente, trazer alegria aos homens.




Patricia Gibin Villela Cytrynowicz

(total de palavras: 870)

Cento e um anos de solidão

A vida não tinha sido muito condescendente com ela. Passados mais de cem anos, era um milagre ainda estar viva. Seu corpo, carcomido pelo tempo, lutava contra tudo quanto era tipo de dor e incômodo: artrite, complicações gástricas, hemorróidas etc. e tal.

Não podia ficar só, pois não conseguia se movimentar como nos áureos tempos. Precisava de ajuda para subir escada, descer escada, fazer comida, comprar alimentos. Era impossível transitar na rua livremente. Sua idade tornara-a prisioneira de si mesma. Não ouvia quase nada. Alguém precisava atender à porta quando necessário, telefonar para o médico ou para algum parente.

Mas, infelizmente, de acordo com ela mesma, era completamente lúcida. Datas, horários, histórias recentes e passadas, pessoas, tudo ela sabia. Jornal lia todos os dias, livros, ah, os livros, além de reler os que mais gostava, apreciava literatura nova, como ela mesma chamava.

Por que infelizmente lúcida? Porque olhava os retratos com saudades daqueles que já tinham ido. Ela era a única viva. Solitária, largada, esquecida. Era de dar dó. Ela mostrava as fotos e dizia em português impecável, pronunciando os ês e os esses e erres: “Está vendo este daqui? Já morreu. E este? Também já se foi. O que é que eu estou fazendo aqui? Tanta gente mais jovem do que eu morrendo, com coisas para fazer, e eu, que já não tenho mais nada para fazer aqui, vivo”.

Era esta a sua vida. Os filhos sumiram. Era um casal. O rapaz, na década de cinqüenta, foi comprar pão e nunca mais voltou. A filha fugiu para sempre com o namorado indesejado. Procurados por advogados, só o rapaz foi encontrado. Viram-se em audiência, alguém tinha de sustentá-la. Mãe e filho se cruzaram no corredor do fórum e não se cumprimentaram. Não se reconheceram. Eles não se viam havia mais de meio século.

E a sua vida ia passando, um dia mais devagar que o outro. Lentamente o sol nascia e se punha na mesma rotina cansativa. Levantava, acordava, comia, não conversava com ninguém, assistia à novela, dormia. E assim o tempo passou. Assim o temo continua passando. E assim ela continua esperando por nada.

A noiva

Finalmente, depois de algumas tentativas, ela conseguiu realizar seu sonho: o de se casar. Começaram os preparativos: lista de convidados, festa, vestido, essas coisas. Apesar da vida pacata, ela queria um vestido arrasador. O modelo foi ela mesma quem criou e a costureira endossou. De cetim branco, bordado, frente única, corpete apertado e da cintura para baixo rodado. Não deveria ter nenhuma costura na cintura.

Prova dali, prova daqui e o vestido nada de ficar adequado. Apertava de um lado, enrugava de outro e a noiva ia ficando nervosa. A esta altura os convites já estavam prontos. Ficaram lindos. Eram da mesma cor do bordado do vestido, um rosa cintilante, com os nomes dos noivos gravados em letras góticas: Indalécio Wanderley e Idslaine Mônica.

Finalmente se casaram. Foi tudo certo, igreja lotada, o acontecimento da cidade. Só o vestido que não ficou a contento da noiva, agora esposa. Mesmo com toda a pompa da festa, ela se sentiu humilhada, como se parte de sua felicidade tivesse sido aniquilada. Ela não teve dúvidas, processou a
costureira.

O juiz, um homem, que sempre comprava suas roupas prontas, que não entendia nada de costura, que nunca tinha pregado um botão na vida, viu-se obrigado a julgar tal causa. Não queria ser injusto. Chamou as testemunhas de ambas as partes e ouviu. Levou o processo para casa e perguntou para a esposa, que um dia fizera curso de costureira, como era esse negócio de frente única, bordado e saia rodada. Teve uma aula. Aprendeu o que era tubinho, prega, chuleio, arremate e tudo o que tornava pronta uma roupa.

Voltando ao tribunal, fez-se a sentença: era impossível um vestido de cetim, sem costura entre a parte de cima e a parte de baixo, bordado, não enrugar. Mas havia a costureira, que, afinal de contas, era profissional, e caberia a ela dizer à noiva se seria possível ou não a feitura daquele modelo. A noiva conseguiu o dinheiro de volta, mas o vestido deveria ficar com a costureira.

Meses depois, a noiva, passando em frente à loja da costureira, viu na vitrine seu vestido de noiva em um manequim. Ela olhou admirada tamanha era a beleza. Aproximou-se para ver de perto os detalhes, mais uma vez, do vestido que um dia fora seu. Notou no cantinho da vitrine, um escrito feito em letra-de-mão: Vende-se este vestido. Ela não acreditou, ficou inconformada. Chorou. Sentiu-se despedaçada. Entrou na loja, comprou o vestido sem negociar. E foram felizes para sempre.

Anjo

Sua força era o ódio. Seus olhos gotejavam maldade. Destilavam desprezo. O amor era banalidade em sua vida. Ela menosprezava os que mendigavam por sua atenção. Era este o seu divertimento. Não havia nada de verdadeiro naquela alma. Melhor, quase nada. A única coisa verdadeira nela era a falsidade e o ódio.

Ela se divertia manipulando, usando e dilacerando pessoas. O som de sua risada era sarcástico. Olhar penetrante. Frio. Calculista. Firme. Tinha uma percepção afinada e refinada. Bons modos, educada. Mas seus sentimentos eram podres. Não sossegava enquanto não envenenasse àqueles que caíam em seus domínios. Pérfida.

E ela encantava porque era magnífica. Tinha rosto de anjo. Parecia meiga, suave, plácida, até. Podia vestir este disfarce por anos. Mas seu íntimo era tão desprezível, que esperaria a vida toda para se satisfazer brincando sutilmente com os sentimentos alheios.

Ela não admitia concorrência. Não havia concorrência para ela. Desde sempre. Desde que nascera. Linda. E perigosa. E cativante. Era tão manipuladora, que nem sua mãe a conhecia. Muito menos seu pai. Ela cegava as pessoas. Encantava. Ela crescera tão linda que seu ódio tornava-se puro, belo, nobre. Era capaz de fazer caridade, de ouvir as pessoas, até de ajudá-las. Todos acreditavam nela.

Mas sua beleza e astúcia não a salvaram da morte. Uma morte sangrenta, fria, merecida. Não sobrou nada dela. Os cães que vagavam nas ruas comeram seus restos. Como ninguém a viu morta, disseram que foi arrebatada para os céus. Virou santa. Virou anjo.

D. Ruth

Eu ando meio sem assunto. Aliás, aquela inspiração toda do primeiro módulo sumiu. Mas, ela já volta. Enquanto isso, fico aqui pensando na d. Ruth Cardoso e no FHC. Ontem, quando entrei na Internet, à noite, dei de cara com a notícia de sua morte. Fiquei triste. Bem triste. Eu gostava dela. Do casal, na verdade.

Eu sempre imaginei ela de camisolinha de babado, à noite, preparando-se para dormir, o FHC já debaixo dos lençóis, lendo na cama, com os óculos na ponta do nariz, esperando por ela. Ela, terminando de passar os cremes no rosto, nas mãos, sentando à beira da cama, tirando os chinelos, dizendo: - Esse rapaz que o substituiu está abusando da confiança dos brasileiros. (ela tinha o português impecável) E o FHC respondendo: -grhn.

- Nando, meu bem, no seu tempo não se falava tanto em pizza.
- grhn.
- Você não acha que está na hora de voltar para moralizar um pouco essa história, salvar ao menos o nome do partido... por falar nisso, a empregada não pregou o botão da sua camisa hoje. Amanhã, você vai ter de usar aquela branca que separei.
- grhn.
- Lembra quando as crianças eram pequenas? Ah! aqueles tempos no Chile! Não dá nem para acreditar! Tanto esforço por nada! A gente até comia empanada, mas pizza nunca. Amor, diz alguma coisa.
- grhn.
- Sabe, acho que vou fazer uma visitinha em alguma favela amanhã. Se você não fosse tão famoso eu o convidaria para ir comigo. Mas não dá. Seria um reboliço danado.
- grhn.
- Beim, vai mais um pouquinho pra lá, você está no meio da cama.
- grhn.
- Não tanto, hoje está frio...

É realmente com tristeza que penso na morte dela. Se o FHC conseguir dormir hoje, vai encontrar uma cama fria. Se não for nesta noite, será na próxima. D. Ruth tinha a mesma idade de minha mãe. Eu realmente sinto muito.

Desamparo

No esplendor da vida ela andava cabisbaixa. Chutando pedras, olhando os sapatos. Falta graxa aqui, está esfolado ali. Seu mundo era só esse. Sapatos, pedras, chão. Quando não chutava, era chutada. Humilhação. Mas pensava: “Um dia vou erguer os olhos”.

Pedra maior, pedra menor, e aquilo ia acumulando. Ia transtornando. Ia remoendo. Ia fervendo. Ia vomitando. Remoendo e refazendo e revivendo. E ela ia andando e a vida apunhalando. E os sapatos continuavam esfolados e desengraxados.

Ela chorava um pouco, mas o que mais doía mesmo era a raiva. Raiva dela mesma, de se deixar ser tão maltratada. “Vida imbecil”. Ela era dependente disso. Não sabia viver sem isso. Sem o desprezo, sem a dor. A dor era um bálsamo, uma alegria. Quando ela não sentia tanta dor, procurava lembrar-se de algo triste, para que o sentimento voltasse e assim ela continuava a chutar pedras e a olhar os sapatos desengraxados e esfolados.

Assim ela nunca tropeçaria. Já conhecia este caminho. Murcho, insosso, mas seguro. Se ela tivesse ao menos coragem de se rebelar! Mas, não, se sentia desamparada só de pensar em ser feliz. Coisa que ela não conhecia, porque nunca tinha experimentado. Felicidade para ela eram sapatos desengraxados e esfolados.

E a vida ia distribuindo seus dias. Para uns, o sol amanhecia maravilhosamente, para outros, nem tanto. Para ela, nunca. Seu fardo era chutar pedras e olhar os sapatos desengraxados e esfolados.

De tanto olhar os sapatos desengraxados e esfolados, ela passou a odiá-los. A cada dia este ódio ia crescendo. Sua vida tornou-se o ódio que ela tinha dos sapatos esfolados e desengraxados. Até que teve coragem. Pegou uma faca, cortou os pés e saiu voando. Para nunca mais voltar, chutar pedras e olhar aqueles sapatos desengraxados e esfolados.

Existência

Ele era um pouco sorumbático, macambúzio, talvez. Ninguém o conhecia bem. Mesmo aqueles que conviviam com ele havia anos não sabiam exatamente o que pensava, sentia. Ele era esquisito.

De vez em quando, tornava-se boa companhia, divertido. Falante, animado, simpático. Mas, este humor não durava muito tempo. Logo se voltava a si mesmo. Trancava-se. Ô cara estranho!

Não era nem feio nem bonito, nem alto nem baixo, nem gordo nem magro, nem loiro nem moreno. Não tinha atrativo físico algum. Intelectual, ninguém sabia. Sozinho, solteiro, já passado da meia-idade, fazia sempre as mesmas coisas, no mesmo horário. O cara tinha tudo para ser muito chato. Mas não era.

Às vezes ficava nervosinho. Uma raridade demonstrar isso no seu temperamento. Só com muita intimidade. Com mais intimidade ainda, dava para perceber que ele era intransigente. Dava até medo. Eu, heim!

Depois de quase vinte anos de convivência, um dia ele apareceu com uma namorada. Como se fosse a coisa mais normal do mundo. Até é, mas não para um cara-ostra que nunca falava de si, nem nunca tinha sido visto acompanhado. Estavam apaixonados.

Ele passou a se vestir melhor, a fazer a barba todos os dias, ficou mais corado. Até sua postura mudou. Tinha ficado de certa forma bonitinho. Foi incrível sua transformação. Mas, como na vida dele o que era bom durava pouco, a namorada foi-se embora. Passaram a se estranhar tanto, que, uma vez, ela quase o atropelou na rua. Que coisa!

A vida voltou ao normal, ele voltou a ser ranzinza, com aquela cor acinzentada no rosto. Ele fazia umas dietas malucas. Um dia só comia cenoura, outro só frutas, outro só água. Aí, dava uma pirada, e mandava ver uma picanha com gordura, um feijão-de-corda bem temperado, cheio de manteiga de garrafa, pimenta, e muita cerveja. Não dava para entender.

Ninguém sabia se ele tinha parentes. Não se ousava perguntar. Não se sabia aonde tinha nascido. Às vezes dava para imaginar que ele tinha sido criado por geração espontânea. O cara não tinha passado, só presente. Nunca falava do futuro. Nem do dia seguinte. Era impressionante.

Ele surgira sem querer, na rua, não se sabe exatamente onde. Fazia tanto tempo que ninguém se lembrava como o tinham conhecido. Era uma coisa sem memória. A única certeza de que tínhamos era que em dia de chuva ele estava sempre em casa. Ele não saía de jeito nenhum sem saber da previsão do tempo.

Uma vez, acho que a previsão do tempo errou, porque ele não iria sair de casa naquele dia, tinha ido passear a pé. Começou a chover intensamente. Sem aviso. Daquelas chuvas incríveis, inundantes. Foi quando ele sumiu. Dizem que ele caiu no bueiro. Eu acho que ele derreteu. Alguém o viu sumindo na rua, no meio da chuva. Só sobraram os cabelinhos dele em um ralo, provavelmente onde ele foi escoado.

No dia seguinte, a vida continuava. Como se ele nunca tivesse existido.

Fixação

Tudo ela limpava e arrumava. Os móveis, a cozinha, os livros, os azulejos, as panelas, a mesa de trabalho, o computador. Tudo o que estava ao seu alcance. A única coisa que ela não conseguia arrumar era ela mesma.

Cada livro que ela lia, quando terminava, era como se aquele exemplar nunca tivesse sido aberto. Em compensação, ela se sentia como se tivesse sido revirada e explorada. Cada roupa que ela guardava no armário estava impecavelmente passada e dobrada. Para contrabalançar, ela se vestia como se tivesse acabado de levar uma surra.

Cada prato que ela colocava no armário era como se estivesse em exposição em uma loja. Para esconder a vontade que ela tinha de se trancar e nunca mais ser vista. Cada azulejo que ela limpava era como se ela estivesse lapidando uma jóia. Para esconder a própria sujeira.

Cada cantinho da sua mesa de trabalho que ela organizava era como se estivesse preparando uma mesa de um jantar de gala. Para disfarçar sua incompreensão dos fatos. Cada panela que ela lavava e guardava era como se ela estivesse colocando uma flor raríssima em um vaso. Para esconder a sua falta de apetite com a vida.

Tudo em sua casa era impecável. Menos sua vida. Muito pelo contrário. Um dia ela se encheu. Deu todos os livros, roupas, vendeu o pouco que tinha e não se deu ao trabalho de pedir demissão. Sumiu. Foi encontrar-se. E viveu feliz para sempre.

O Escritor

Era uma manhã aparentemente comum, a não ser pelo fato de ele ter acordado sem voz. No início ele nem se importou, achando que fosse falar assim que o sol esquentasse. Lá pelas oito, nove horas da manhã, ele continuava mudo. Nem um sussurro saía de sua garganta.

Começou a ficar preocupado. Como iria pedir a média na padaria? Por mímica, provavelmente. Vá lá, conversar por sinais não é tão grave, pensou. Absorto em justificativas para seu estado, só percebeu que o telefone estava tocando, quando olhou para o lado e viu uma luz ensandecia vinda de seu celular. Estava surdo também.

Nem para o médico ele podia telefonar. Será que seu cérebro tinha se esquecido das palavras? Das letras? Mas, se ele conseguia pensar, as letras, as palavras, as frases, orações, ainda estavam em sua memória. Imediatamente pegou um pedaço de papel e uma caneta e pôs-se a escrever. Percebeu que as palavras lhe saíam mais fáceis do que o usual. Era quase um ato involuntário.

Ele nunca tinha sido muito bom nisso, mas, de repente, o ato de escrever tornara-se suave, natural. Era como respirar. Passou a escrever tudo o que pensava. O que iria comer, o que iria assistir, ler, e assim por diante. Passou horas daquele jeito, escrevendo. Nem se deu conta do dia que já tinha passado.

Não foi ao trabalho, não foi ao boteco, não foi a lugar algum. Depois de um dia inteiro e parte da noite escrevendo, releu seu texto e percebeu que havia estado em muitos lugares, vivido muitas aventuras, conhecido várias pessoas. Ainda pasmado com o que estava acontecendo, toca novamente o telefone. Atendeu automaticamente, disse alô, esperou um pouco e respondeu que havia sido engano. Nascia um escritor, atormentado pela ausência de si mesmo e agora se encontrado.

Perfeição

Ela era perfeita. Estudara no exterior durante anos. Fez faculdade fora. Depois, aprimorou o francês em um curso rápido em Paris e seguiu para Londres, onde fez um curso de pós-graduação qualquer. Talvez uma especialização em política. Falava cinco línguas fluentemente, sem sotaque: inglês, francês, espanhol, hebraico e árabe, além da sua língua materna, o português, claro.

Era também linda. Pele alvíssima, cabelos negros, longos, viçosos e brilhantes. O corpo, então, escultural. Assim que chegou ao Brasil, arrumou o emprego dos sonhos. No início era um cargo comum, mas, depois de dois meses, conseguiu posição de destaque, com um salário invejável. Ela tinha tempo para tudo. Para se dedicar integralmente ao trabalho, para cuidar da casa, para cursar aulas de dança duas vezes por semana. Dedicava-se também com devoção à família, aos pais, já que não era casada, aos amigos e à vida cultural. Mais não cabia em sua personalidade.

Um dia, se atrasara um pouco ao sair para o trabalho, logo pela manhã, e saiu de casa sem se olhar no espelho. Distraída, não percebeu que a olhavam curiosos quando desceu do carro. Entrou no trabalho e todos ficaram constrangidos e não comentaram nada. Naquele dia ela estava se sentindo especial. Livre. Estava tão absorta em si mesma, que não notou os olhares surpresos lançados sobre ela. Nem ao longo do dia no trabalho, nem no restaurante em que costumava almoçar.

Foi um espanto. Ela estava tão bem, que ninguém teve coragem de lhe dizer. Terminou o dia, ficou um pouquinho mais no trabalho. Antes de pegar o carro e voltar para casa, deu ainda uma voltinha na rua para olhar as vitrines das lojas. Entrou em um supermercado expresso, comprou alguma coisa para preparar para o jantar e se foi. Chegando em casa, colocou as coisas na cozinha, foi até o banheiro lavar as mãos. Olhou-se no espelho e admirou-se. Finalmente, depois de muito tempo, ela teve um dia normal, como se não fosse prefeita.

Perfeição

Ela era perfeita. Estudara no exterior durante anos. Fez faculdade fora. Depois, aprimorou o francês em um curso rápido em Paris e seguiu para Londres, onde fez um curso de pós-graduação qualquer. Talvez uma especialização em política. Falava cinco línguas fluentemente, sem sotaque: inglês, francês, espanhol, hebraico e árabe, além da sua língua materna, o português, claro.

Era também linda. Pele alvíssima, cabelos negros, longos, viçosos e brilhantes. O corpo, então, escultural. Assim que chegou ao Brasil, arrumou o emprego dos sonhos. No início era um cargo comum, mas, depois de dois meses, conseguiu posição de destaque, com um salário invejável. Ela tinha tempo para tudo. Para se dedicar integralmente ao trabalho, para cuidar da casa, para cursar aulas de dança duas vezes por semana. Dedicava-se também com devoção à família, aos pais, já que não era casada, aos amigos e à vida cultural. Mais não cabia em sua personalidade.

Um dia, se atrasara um pouco ao sair para o trabalho, logo pela manhã, e saiu de casa sem se olhar no espelho. Distraída, não percebeu que a olhavam curiosos quando desceu do carro. Entrou no trabalho e todos ficaram constrangidos e não comentaram nada. Naquele dia ela estava se sentindo especial. Livre. Estava tão absorta em si mesma, que não notou os olhares surpresos lançados sobre ela. Nem ao longo do dia no trabalho, nem no restaurante em que costumava almoçar.

Foi um espanto. Ela estava tão bem, que ninguém teve coragem de lhe dizer. Terminou o dia, ficou um pouquinho mais no trabalho. Antes de pegar o carro e voltar para casa, deu ainda uma voltinha na rua para olhar as vitrines das lojas. Entrou em um supermercado expresso, comprou alguma coisa para preparar para o jantar e se foi. Chegando em casa, colocou as coisas na cozinha, foi até o banheiro lavar as mãos. Olhou-se no espelho e admirou-se. Finalmente, depois de muito tempo, ela teve um dia normal, como se não fosse prefeita.

Quando a vida brinca de morte

A vida brinca de morte quando você pensa que está bem e não está. A vida brinca de morte quando você é traído. A vida brinca de morte quando você despenca de si mesmo. A vida brinca de morte quando acontece alguma coisa que você não pode controlar. A vida brinca de morte quando ela encerra as previsões. A vida brinca de morte quando você recebe uma notícia muito ruim e fica sem reação. A vida brinca de morte quando todos os dias, até os ensolarados, são nublados. A vida brinca de morte quando some o sorriso. A vida brinca de morte quando ela avisa que talvez esteja na hora de partir. A vida brinca de morte quando se percebe que para trás você não fez nada e no futuro não sabe se vai fazer. A vida brinca de morte quando vem uma dor e você não sabe se vai sobreviver. A vida brinca de morte quando vem a quimioterapia.

Semelhanças

O cara tinha cara de lustre. Isso mesmo, cara de lustre. Eu nunca tinha visto ninguém assim. Já vi gente com cara de cavalo, de maçaneta, de cachorro, mas, de lustre, nunca. Ele era alto, careca, magro e, quando sorria, parecia uma lâmpada acesa.

Maldade? Não. Ele era feliz daquele jeito. Tinha uma esposa que era parecida com ele. Só não era careca, mas tinha um semblante parecido. Eu já tinha visto casais semelhantes, mas não como esse. Por exemplo, uma vez conheci um cara que tinha a boca torta. A boca dele não era no meio do rosto como todo mundo, era na bochecha. Anos mais tarde eu o reencontrei e ele tinha uma esposa, também com a boca no meio da bochecha. Eles podiam ficar se beijando de lado e ninguém percebia. Há suas vantagens.

Mas o homem-lustre era impressionante. Parecia refletir. Se se tratava de uma pessoa iluminada, não sei, nunca conversei com ele. Ele tomava café-da-manhã na mesma padaria que eu. O pior é que não podia ficar olhando, já pensou ele imaginar que talvez fosse um flerte casual? Jamais. Nunca. Em hipótese alguma. Toda manhã era a mesma coisa: pingado e pão com manteiga na chapa.

No fim-de-semana que eu o vi com a esposa eu quase tive um troço. Olhei incrédula. Ela era realmente a luz de sua vida. Ela tinha uma testa enorme, sem disfarces, tipo franja, coisas de mulher, e sorria com mais dentes na boca que um ser humano pudesse ter.

Passou o tempo, as coisas, como sempre, mudam, as pessoas circulam e eu nunca mais vi o tal sujeito. Um dia, na mesma padaria, alguém do meu lado pro Zé do balcão:

- E aí, Zé, cadê o Lampinha? Nunca mais vi o cara!

Boquiaberta e confusa olhei para o cara. Eu estava crente que só eu tinha reparado no homem-lustre. Mas, não, a impressão era pública e notória.

O Zé, apontando para cima disse, olha ele lá. O homem-lustre tinha se tornado realmente um lustre. O homem lustre tinha se tornado ilustre.

Morre lentamente

Pablo Neruda

Morre lentamente quem não viaja, quem não lê, quem não

ouve música, quem não encontra graça em si mesmo.

Morre lentamente quem destrói o seu amor-próprio, quem

não se deixa ajudar.



Morre lentamente quem se transforma em escravo do

hábito, repetindo todos os dias os mesmos trajetos,

quem não muda de marca, não se arrisca a vestir uma

nova cor ou não conversa com quem não conhece.



Morre lentamente quem faz da televisão o seu guru.

Morre lentamente quem evita uma paixão, quem prefere o

negro sobre o branco e os pontos sobre os 'is' em

detrimento de um redemoinho de emoções justamente as

que resgatam o brilho dos olhos, sorrisos dos bocejos,

corações aos tropeços e sentimentos.



Morre lentamente quem não vira a mesa quando está

infeliz, quem não arrisca o certo pelo incerto para ir

atrás de um sonho, quem não se permite pelo menos uma

vez na vida fugir dos conselhos sensatos.



Morre lentamente, quem passa os dias queixando-se da

sua má sorte ou da chuva incessante.



Morre lentamente, quem abandona um projeto antes de

iniciá-lo, não pergunta sobre um assunto que

desconhece ou não responde quando lhe indagam sobre algo que sabe.



Morre lentamente.....