domingo, 19 de outubro de 2008

Existência

Ele era um pouco sorumbático, macambúzio, talvez. Ninguém o conhecia bem. Mesmo aqueles que conviviam com ele havia anos não sabiam exatamente o que pensava, sentia. Ele era esquisito.

De vez em quando, tornava-se boa companhia, divertido. Falante, animado, simpático. Mas, este humor não durava muito tempo. Logo se voltava a si mesmo. Trancava-se. Ô cara estranho!

Não era nem feio nem bonito, nem alto nem baixo, nem gordo nem magro, nem loiro nem moreno. Não tinha atrativo físico algum. Intelectual, ninguém sabia. Sozinho, solteiro, já passado da meia-idade, fazia sempre as mesmas coisas, no mesmo horário. O cara tinha tudo para ser muito chato. Mas não era.

Às vezes ficava nervosinho. Uma raridade demonstrar isso no seu temperamento. Só com muita intimidade. Com mais intimidade ainda, dava para perceber que ele era intransigente. Dava até medo. Eu, heim!

Depois de quase vinte anos de convivência, um dia ele apareceu com uma namorada. Como se fosse a coisa mais normal do mundo. Até é, mas não para um cara-ostra que nunca falava de si, nem nunca tinha sido visto acompanhado. Estavam apaixonados.

Ele passou a se vestir melhor, a fazer a barba todos os dias, ficou mais corado. Até sua postura mudou. Tinha ficado de certa forma bonitinho. Foi incrível sua transformação. Mas, como na vida dele o que era bom durava pouco, a namorada foi-se embora. Passaram a se estranhar tanto, que, uma vez, ela quase o atropelou na rua. Que coisa!

A vida voltou ao normal, ele voltou a ser ranzinza, com aquela cor acinzentada no rosto. Ele fazia umas dietas malucas. Um dia só comia cenoura, outro só frutas, outro só água. Aí, dava uma pirada, e mandava ver uma picanha com gordura, um feijão-de-corda bem temperado, cheio de manteiga de garrafa, pimenta, e muita cerveja. Não dava para entender.

Ninguém sabia se ele tinha parentes. Não se ousava perguntar. Não se sabia aonde tinha nascido. Às vezes dava para imaginar que ele tinha sido criado por geração espontânea. O cara não tinha passado, só presente. Nunca falava do futuro. Nem do dia seguinte. Era impressionante.

Ele surgira sem querer, na rua, não se sabe exatamente onde. Fazia tanto tempo que ninguém se lembrava como o tinham conhecido. Era uma coisa sem memória. A única certeza de que tínhamos era que em dia de chuva ele estava sempre em casa. Ele não saía de jeito nenhum sem saber da previsão do tempo.

Uma vez, acho que a previsão do tempo errou, porque ele não iria sair de casa naquele dia, tinha ido passear a pé. Começou a chover intensamente. Sem aviso. Daquelas chuvas incríveis, inundantes. Foi quando ele sumiu. Dizem que ele caiu no bueiro. Eu acho que ele derreteu. Alguém o viu sumindo na rua, no meio da chuva. Só sobraram os cabelinhos dele em um ralo, provavelmente onde ele foi escoado.

No dia seguinte, a vida continuava. Como se ele nunca tivesse existido.

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