domingo, 19 de outubro de 2008

Cento e um anos de solidão

A vida não tinha sido muito condescendente com ela. Passados mais de cem anos, era um milagre ainda estar viva. Seu corpo, carcomido pelo tempo, lutava contra tudo quanto era tipo de dor e incômodo: artrite, complicações gástricas, hemorróidas etc. e tal.

Não podia ficar só, pois não conseguia se movimentar como nos áureos tempos. Precisava de ajuda para subir escada, descer escada, fazer comida, comprar alimentos. Era impossível transitar na rua livremente. Sua idade tornara-a prisioneira de si mesma. Não ouvia quase nada. Alguém precisava atender à porta quando necessário, telefonar para o médico ou para algum parente.

Mas, infelizmente, de acordo com ela mesma, era completamente lúcida. Datas, horários, histórias recentes e passadas, pessoas, tudo ela sabia. Jornal lia todos os dias, livros, ah, os livros, além de reler os que mais gostava, apreciava literatura nova, como ela mesma chamava.

Por que infelizmente lúcida? Porque olhava os retratos com saudades daqueles que já tinham ido. Ela era a única viva. Solitária, largada, esquecida. Era de dar dó. Ela mostrava as fotos e dizia em português impecável, pronunciando os ês e os esses e erres: “Está vendo este daqui? Já morreu. E este? Também já se foi. O que é que eu estou fazendo aqui? Tanta gente mais jovem do que eu morrendo, com coisas para fazer, e eu, que já não tenho mais nada para fazer aqui, vivo”.

Era esta a sua vida. Os filhos sumiram. Era um casal. O rapaz, na década de cinqüenta, foi comprar pão e nunca mais voltou. A filha fugiu para sempre com o namorado indesejado. Procurados por advogados, só o rapaz foi encontrado. Viram-se em audiência, alguém tinha de sustentá-la. Mãe e filho se cruzaram no corredor do fórum e não se cumprimentaram. Não se reconheceram. Eles não se viam havia mais de meio século.

E a sua vida ia passando, um dia mais devagar que o outro. Lentamente o sol nascia e se punha na mesma rotina cansativa. Levantava, acordava, comia, não conversava com ninguém, assistia à novela, dormia. E assim o tempo passou. Assim o temo continua passando. E assim ela continua esperando por nada.

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