domingo, 19 de outubro de 2008

Desamparo

No esplendor da vida ela andava cabisbaixa. Chutando pedras, olhando os sapatos. Falta graxa aqui, está esfolado ali. Seu mundo era só esse. Sapatos, pedras, chão. Quando não chutava, era chutada. Humilhação. Mas pensava: “Um dia vou erguer os olhos”.

Pedra maior, pedra menor, e aquilo ia acumulando. Ia transtornando. Ia remoendo. Ia fervendo. Ia vomitando. Remoendo e refazendo e revivendo. E ela ia andando e a vida apunhalando. E os sapatos continuavam esfolados e desengraxados.

Ela chorava um pouco, mas o que mais doía mesmo era a raiva. Raiva dela mesma, de se deixar ser tão maltratada. “Vida imbecil”. Ela era dependente disso. Não sabia viver sem isso. Sem o desprezo, sem a dor. A dor era um bálsamo, uma alegria. Quando ela não sentia tanta dor, procurava lembrar-se de algo triste, para que o sentimento voltasse e assim ela continuava a chutar pedras e a olhar os sapatos desengraxados e esfolados.

Assim ela nunca tropeçaria. Já conhecia este caminho. Murcho, insosso, mas seguro. Se ela tivesse ao menos coragem de se rebelar! Mas, não, se sentia desamparada só de pensar em ser feliz. Coisa que ela não conhecia, porque nunca tinha experimentado. Felicidade para ela eram sapatos desengraxados e esfolados.

E a vida ia distribuindo seus dias. Para uns, o sol amanhecia maravilhosamente, para outros, nem tanto. Para ela, nunca. Seu fardo era chutar pedras e olhar os sapatos desengraxados e esfolados.

De tanto olhar os sapatos desengraxados e esfolados, ela passou a odiá-los. A cada dia este ódio ia crescendo. Sua vida tornou-se o ódio que ela tinha dos sapatos esfolados e desengraxados. Até que teve coragem. Pegou uma faca, cortou os pés e saiu voando. Para nunca mais voltar, chutar pedras e olhar aqueles sapatos desengraxados e esfolados.

Nenhum comentário: